Martin Scorsese é um homem que não precisa de introdução. Um dos grandes cineastas contemporâneos, escolhe a dedo os seus projetos mais do que o realizador de Hollywood comum. Mesmo fora do circuito comercial americano, a sua presença no mundo do cinema é preeminente.
Apesar de já ter trabalhado nos mais variados géneros, desde o romance ao thriller psicológico, Scorsese tende a preferir a cultura gangster criminal dos Estados Unidos. Os seus anti-heróis pertencem à máfia italiano-americana, ao sindicato criminal irlandês, ou aos gangues do século XIX em Nova Iorque, num misto de caricaturas humorísticas e psicopatas assassinos sem escrúpulos.
Porém, desde de The Departed (2006), que o realizador americano se tem afastado desse género cinemático, tomando as rédeas de projetos como Hugo (2011), Shutter Island (2010) e O Lobo de Wall Street (2013) – filmes com a marca indelével de Scorsese, mas separados da sua carreira mais popular.
Em Boardwalk Empire (2010-2014), no entanto, o cineasta volta às suas raízes. O sumptuoso episódio piloto, produzido pelo canal americano HBO, custou à volta de 18 milhões de dólares – mais do que uma mão cheia de filmes portugueses comerciais lançados nos últimos anos.
Como a maior parte das séries, a criação e desenvolvimento das personagens deve-se ao argumentista principal da chamada “writer’s room”. Neste caso, Boardwalk Empire é o fruto da mente de Terrence Winter, um aclamado escritor americano que também trabalhou na popular série Os Sopranos (1999-2007).
O argumentista acabaria por escrever o argumento para o filme de Scorsese O Lobo de Wall Street, três anos após a estreia do primeiro episódio. A série é baseada no livro do mesmo nome, e conta os pontos altos e baixos da vida de criminosos famosos dos anos 20 e 30 como Al Capone, Arnold Rothstein, Meyer Lansky e Frankie ‘Lucky’ Luciano.
O episódio tem quase uma hora e meia de duração: um testamento à sua ambição e diversidade narrativa. Não haviam muitos episódios como este em 2010: paridos por um realizador tão conhecido e influente como Martin Scorsese, ostentando custos de produção tão elevados e sonantes nomes como Steve Buscemi e Michael Pitt a protagonizarem as personagens principais.
Ao contrário de séries mais populares como Breaking Bad (2008-2013) e Mad Men (2007-2015), tanto junto do público como da crítica, que se focavam em personagens principais únicas (pensem Walter White e Don Draper), Boardwalk Empire pretendia ser uma crónica fidedigna de um conjunto enorme de figuras reais e ficcionadas da cultura criminosa dos anos 20.
Foi construída de propósito para a série esta réplica do passadiço de Atlantic City. Custou cerca de 5 milhões de dólares e tem 91 metros de comprimento.
O malabarismo narrativo necessário para tal não é simples façanha: a série precisava de tornar claras as inúmeras fações de gangsters existentes, desde a máfia de Atlantic City ao império underground das incipientes 5 famílias nova iorquinas, sem se esquecer de criar arcos narrativos para todas as personagens nelas integradas. Ficcionar a realidade com tamanha minúcia não é para qualquer um.
Portanto, quem mais teria a capacidade para unir todos estes fios divergentes que não Martin Scorsese? No que viria a ser o paradigma para os episódios que se seguiriam, esta primeira incursão na era da Lei Seca faz uso do vasto esquema visual e da atenção ao detalhe pela qual o realizador de Taxi Driver (1976) é conhecido. Toda a sua estética, desde a palete de cores escura/acastanhada durante a noite, e cinzenta e azul durante o dia foi apropriada pelos subsequentes realizadores da série.
É que tudo está lá: desde os movimentos de câmara fluídos e bem compostos, ao uso da montagem com música de época, até ao emprego da ação paralela (o clímax do enredo passa-se em dois locais diferentes, com dois grupos de personagens distintos). O episódio encapsula perfeitamente toda a carreira do realizador até à época. Boardwalk Empire vive do excesso, da cor, do humor negro e da violência criminal tão particulares a Scorsese.
Assim, mais do que um episódio de televisão, Boardwalk Empire foi um marco importantíssimo para o meio audiovisual devido à sua audácia estética, aos seus enormes custos de produção, ao seu extenso cast de personagens e aos artistas reconhecidos internacionalmente graças ao seu trabalho em Hollywood. A televisão, com Boardwalk Empire, tornou-se um veículo da sétima arte em todos os aspetos.